quinta-feira, 11 de julho de 2013

sobre fatos e feridas.

Nelson Rodrigues foi o primeiro a assumir publicamente os seus contragostos pelos fatos, uma vez que na figura de voz jornalistica inquestionável diária e autor entronizado na teatralidade brasileira, tinha como certeza principal que estava, ele próprio, além do bem e do mal. Logicamente além também dos fatos. Como se ele um Ser, se transformasse em um Ente. Quase que um Deus dos folhetins e por silogismo, mente áurea do conhecimento.

Pior para eles, os fatos, se não correspondiam à sua visão do jogo, da cena, da vida ou do mundo. Só ele, Nelson, do alto do seu enfisema, poderia julgar o certo do errado. Os fatos eram meros fatos. A realidade? Bom, ela que se dane. E nos nossos tempos cada vez mais sombrios o vaticínio se repete a torto e a direito, a reto e a esquerdo. E não só Nelson, esse Atlas moderno, pensa assim. Ele apenas foi o primeiro réu confesso do esquema. O primeiro a falar, e desde então um dos poucos a assumir o que realmente achava dos seus contragostos. Não foi criança esperneante, mas adulto. Um adulto com caráter, bom ou mau, os fatos que o digam. Ele pelo menos foi além, não se calou diante do que sabia, foi o primeiro a dizer o que sempre os outros calam.

Daí para falar das recentes manifestações populares - ou o junho de 2013, já aclamado pelos nossos historiadores-miojo - temos o discurso de massa falida na qual se apoiam os teóricos críticos do nosso quadro social, do nosso estado de direito, do nosso sistema-mundo atual. Os fatos não importam, o que importam são as interpretações. E assim continuamos ad infinitum a propagar as mesmas palavras. Quixotes. Mas quixotes que sabem o que dizem. Quixotes que sabem que estão olhando somente para um moinho. E nada mais. Porém, sabem que para a história se manter boa, o livro grosso, o paraíso fiscal intocado, o moinho é um mal vil.

Os últimos acontecimentos levaram a questionamentos. Limites do governo, direito à cidade, crise de representatividade, desenvolvimento desigual, releitura da constitucionalidade. E há as assertivas óbvias e guardadas, quase que tão guardadas quanto obituários de Niemeyers, Marinhos, Thatchers. A solução para o problema? Mais problema. Os partidos são corruptos? Mais partidos então. O Estado está fracassado? Mais Estado então. O capitalismo é desigual? Mais capitalismo então. E assim se segue a receita de bolo do Unabomber. Mais e mais. Não se pensa na causa dos problemas, apenas se tenta corrigir as consequências do que está havendo. E os fatos? Bom, pior para eles.

Tudo que se remete às reivindicações dos setores populares - e populares aqui não no sentido de quantidade, mas qualidade como popular, ou seja, à margem dos coxinhas - passa justamente por causas mais antigas. Por feridas mais profundas. A benesse pela redução da passagem é apenas temporária, porém o beneplácito vem de alguém que não precisa ser temporário. Ou melhor, deve ser extinto. Ao pensarmos apenas nos 20 centavos e o que há além disso - "Não são só os 20 centavos." - perdemos o foco - esse foco tão aludido e aturdido pelo gás lacrimogêneo - uma vez que não vemos que a conjunção do Partido-Estado-Capitalismo, esse Cérbero, é o principal a ser derrubado. Não só o aumento, ou o Calheiros, ou as PECs. Enquanto houver a tríade, novas manifestações irão irromper. E quem duvida disso, não está nem aí para os fatos. Ou o contrário. Conhece bem os fatos.

Daí a distorção do discurso atua de forma solene, ao desviar a atenção da ferida, para um band-aid mais bonitinho. Não se trata o machucado ou a causa para o aumento, mas tenta se maquiar ou por uma cara mais leve, ou mais nova, ou diferente ao que está expurgando. O pus vai continuar a sair e o mais rápido possível o arremedo virá, sob diversas formas.

As manifestações foram as primeiras de próximas, e provavelmente sem pensarmos no que corta nossas vidas de formas tão ríspidas que não conseguimos nem com a medicina do século XXIII sará-las, elas não serão as últimas. Haverá um dia uma manifestação final. Agora quando ela ocorrerá, não preciso com exatidão uma data, mas só ocorrerá na medida que a ferida for realmente tratada e a virose da tríade for extirpada.