quinta-feira, 11 de julho de 2013

sobre fatos e feridas.

Nelson Rodrigues foi o primeiro a assumir publicamente os seus contragostos pelos fatos, uma vez que na figura de voz jornalistica inquestionável diária e autor entronizado na teatralidade brasileira, tinha como certeza principal que estava, ele próprio, além do bem e do mal. Logicamente além também dos fatos. Como se ele um Ser, se transformasse em um Ente. Quase que um Deus dos folhetins e por silogismo, mente áurea do conhecimento.

Pior para eles, os fatos, se não correspondiam à sua visão do jogo, da cena, da vida ou do mundo. Só ele, Nelson, do alto do seu enfisema, poderia julgar o certo do errado. Os fatos eram meros fatos. A realidade? Bom, ela que se dane. E nos nossos tempos cada vez mais sombrios o vaticínio se repete a torto e a direito, a reto e a esquerdo. E não só Nelson, esse Atlas moderno, pensa assim. Ele apenas foi o primeiro réu confesso do esquema. O primeiro a falar, e desde então um dos poucos a assumir o que realmente achava dos seus contragostos. Não foi criança esperneante, mas adulto. Um adulto com caráter, bom ou mau, os fatos que o digam. Ele pelo menos foi além, não se calou diante do que sabia, foi o primeiro a dizer o que sempre os outros calam.

Daí para falar das recentes manifestações populares - ou o junho de 2013, já aclamado pelos nossos historiadores-miojo - temos o discurso de massa falida na qual se apoiam os teóricos críticos do nosso quadro social, do nosso estado de direito, do nosso sistema-mundo atual. Os fatos não importam, o que importam são as interpretações. E assim continuamos ad infinitum a propagar as mesmas palavras. Quixotes. Mas quixotes que sabem o que dizem. Quixotes que sabem que estão olhando somente para um moinho. E nada mais. Porém, sabem que para a história se manter boa, o livro grosso, o paraíso fiscal intocado, o moinho é um mal vil.

Os últimos acontecimentos levaram a questionamentos. Limites do governo, direito à cidade, crise de representatividade, desenvolvimento desigual, releitura da constitucionalidade. E há as assertivas óbvias e guardadas, quase que tão guardadas quanto obituários de Niemeyers, Marinhos, Thatchers. A solução para o problema? Mais problema. Os partidos são corruptos? Mais partidos então. O Estado está fracassado? Mais Estado então. O capitalismo é desigual? Mais capitalismo então. E assim se segue a receita de bolo do Unabomber. Mais e mais. Não se pensa na causa dos problemas, apenas se tenta corrigir as consequências do que está havendo. E os fatos? Bom, pior para eles.

Tudo que se remete às reivindicações dos setores populares - e populares aqui não no sentido de quantidade, mas qualidade como popular, ou seja, à margem dos coxinhas - passa justamente por causas mais antigas. Por feridas mais profundas. A benesse pela redução da passagem é apenas temporária, porém o beneplácito vem de alguém que não precisa ser temporário. Ou melhor, deve ser extinto. Ao pensarmos apenas nos 20 centavos e o que há além disso - "Não são só os 20 centavos." - perdemos o foco - esse foco tão aludido e aturdido pelo gás lacrimogêneo - uma vez que não vemos que a conjunção do Partido-Estado-Capitalismo, esse Cérbero, é o principal a ser derrubado. Não só o aumento, ou o Calheiros, ou as PECs. Enquanto houver a tríade, novas manifestações irão irromper. E quem duvida disso, não está nem aí para os fatos. Ou o contrário. Conhece bem os fatos.

Daí a distorção do discurso atua de forma solene, ao desviar a atenção da ferida, para um band-aid mais bonitinho. Não se trata o machucado ou a causa para o aumento, mas tenta se maquiar ou por uma cara mais leve, ou mais nova, ou diferente ao que está expurgando. O pus vai continuar a sair e o mais rápido possível o arremedo virá, sob diversas formas.

As manifestações foram as primeiras de próximas, e provavelmente sem pensarmos no que corta nossas vidas de formas tão ríspidas que não conseguimos nem com a medicina do século XXIII sará-las, elas não serão as últimas. Haverá um dia uma manifestação final. Agora quando ela ocorrerá, não preciso com exatidão uma data, mas só ocorrerá na medida que a ferida for realmente tratada e a virose da tríade for extirpada.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

um clássico nas férias

há muito não lia um livro daqueles que nos indicam para ler na faculdade. mais especificamente um livro que para quem se adentrou no feroz mundo das ciências ditas sociais - de longe lembro-me de um colega retoricamente dizendo: "mas que ciência não é social???" - das geografias e histórias afins, dos quais imortalmente sempre ouve-se falar. 

comecei e terminei num mesmo dia de ler as quase 250 páginas de "O Colapso da Modernização" do Robert Kurz. não sou um leitor ávido do autor, e confesso que tirando por um ou outro artigo e/ou passagem do mesmo, nunca tinha lido de cabo a rabo nada mais contundente do alemão. o livro é bom, escrito no final da década de 80 e começo na década de 90, justamente do meio pro fim da implosão da união soviética, que o autor e a torcida do flamengo lá do IFCS denominam por fim do "socialismo real". eu prefiro chamar de socialismo "surreal", mas enfim, são notas de rodapé para a história. 

algumas dúvidas foram esclarecidas, outras nem tanto, mas no conjunto é algo bom. até porque o próprio autor se encontrava no meio do imbróglio todo e, por razões puramente lógicas, não há ninguém melhor para falar de uma crise européia do que um europeu, até porque sartre não saberia escrever melhor sobre a imaterialidade de qualquer botequim do que aldir blanc e cia. o livro esmiuça bem o fim do "sonho proletário" e as consequências da planificação e "refutação" da lógica da concorrência e mostra que na verdade o estatismo totalitário nada tinha de diferente com o nosso benfazejo monetarismo totalitário.

saber que o estado de bem estar social é apenas a outra face do libertarianismo voraz, todos sabem, uma vez que o welfare state é apenas aquela tirada do pé do acelerador para mudar a marcha. em outra analogia simples, apenas um dia para arrumar melhor as armadilhas e esperar a noite chegar pra pôr em prática, de forma covarde, a seleção natural. kurz mostra no livro que a marcha para o fim do socialismo é também uma etapa para o fim do capitalismo. assim como a formulação de uma alternativa ao sistema capitalista nada mais foi do que um feng shui do próprio. mais do mesmo, mesmo do mais.

para um livro de 20 anos, é bem profético quanto a isso. o autor enumera e categoriza cada falha de cada sistema - e por vezes essa enumeração me deu sono, confesso, mas nada que um café e uma esticada nas pernas não tenha resolvido - e mostra que na verdade o próprio marx - ou lenin, ou stalin; sinta-se a vontade para denominar o seu cretino - não engendrou uma solução nova, mas sim apenas mudou um quadro aqui e uma mesa ali. para um hegeliano, bom, isso é fácil. a marcha agonizante para qual nos encaminhamos é bem exposta no livro. daí dou razão para os catedráticos de cabeças brancas que tanto falam bem dos clássicos. de alguma forma eles têm razão. apesar de eu nunca comprar o peixe deles, nesse caso ele cheira bem.

a sensação ao ler o livro é de satisfação no geral, mas em certas pontualidades o alemão não joga do jeito que a gente queria. "ih lá vem a retranca...". há grandes passagens do livro que dão aquela sensação de "porque eu não pensei nisso antes" e em outras também grandes passagens há aquela outra sensação "pô, falou merda". não sei se posso categorizar o camarada como marxista, ou se sequer posso alcunhá-lo de camarada, mas parece que tudo remete a marx e a deturpação do pensamento original - e sobe aquele cheiro de "intocabilidade". em alguns lugares o autor ensaia uma superação do "modelo" marxista, mas fica por isso mesmo. como padres que se apegam a santos, o kurz se apegou muito a marx. como na santíssima trindade: pai, filho e espírito santo. no caso acá foi marx, engels e a mais valia. posso estar errado, como sempre qualquer um pode estar, mas me pareceu que no final o problema é que "todo mundo leu errado e não é bem assim". discurso que, bem, ouvi muito nos corredores litorâneos da faculdade.

kurz bebe de muitas fontes, a buscada de fichte e a "profetização" quanto aos fundamentalismos são sensacionais, mas a ladainha em torno da superação não mostra nada demais. dirão ao longe que "ô companheiro, tem 20 anos o livro!" e dou o braço a torcer quanto a isso. mas que o livro não é aquela formosura não é. é um clássico, notório e precisamente no melhor sentido. mas todo clássico tem o teste do tempo. talvez ainda essa semana eu releia o manifesto contra o trabalho pra ver se acho alguma coisa que me faça entender melhor a "superação". fiquei com vontade de ler outros livros do camarada, e provavelmente devo fazer isso. uma boa leitura, acima de tudo, e um bom passatempo para as mal-sonhadas férias de meio de ano.

pode ser que eu esteja errado, mas para ler com gosto o Kurz, eu precisava mesmo de férias.

domingo, 10 de junho de 2012

ai de mim...

quatro da manhã e o que se espreme é só poesia. acho e talvez tenha a certeza que essa é a hora-ápice dos poetas. entre tentar fazer a noite durar e ver ao fim de duas ou mais horas o sol nascer só há poesia. mesmo os textos mais nítidos, técnicos, aptos e homéricos se acabrunham à essa hora. é a hora da melancolia, do sono perdido, da cabeça a mil. e cabeça a mil quase falhando, e daí sai a poesia. a poesia é o limite antes da pane. todo poeta se esgota depois de cada verso. todo fim de estrofe tem seu rumo direto para a falha mental, para a exaustão. nenhuma poesia é digna depois das seis da manhã. todo poeta se cansa, e não precisa ser parnasiano para se cansar. mesmo um leminski devia se sentir exaurido após dois ou três versos tortos.

 a poesia é muito pessoal para ser relida, para ser reescrita. é momento, é ponto de esgotamento. todo poeta que se re-lê encontra um ser humano ridículo. e pior, se encontra ali. isso é o mais fatal da poesia. ao contrário da filosofia, que serve para tudo, a poesia serve para nada. e é o esforço para o nada que esgota. é engraçado ver que a filosofia e a poesia muitas vezes parecem andar juntas. um Cioran escrevendo parece poeta. e o melhor dos poetas. triste, deprimente, melancólico, decadente, amargurado, profético. a poesia se torna filosofia no momento em que se esgota, não consegue mais andar. a poesia na cadeira de rodas é a filosofia. enquadrada e se arrastando.

ser poeta não é profissão. e poesia não deveria ser alegre. não há razão para ser alegre. mesmo as de amor carregam um pouco de bironismo detestável. o ponto alto da poesia é a saturação, o esgotamento, o fim. é o nada traduzido em palavras. daí que ao chegar ao nada se esgota. a chave de força desliga. o homem se fecha ao se abrir. a tortuosa estrada que leva aos versos e as estrofes é feita de cacos de vidro. a linha de chegada é um soco no peito. e nada mais. daí o poeta se cansa, vai dormir, espera outro dia. para se angustiar novamente. cansado, com as costas doendo, a mandíbula travada, a mente perturbada, faz poesia para tentar se calar. é estranho falar aos prantos quando se escreve quando a finalidade é perder a voz, se esgotar ou tentar se esquecer. e no final se perdura mais ainda.

nada dura mais que a poesia e nada deveria durar menos. é insípida e inodora muitas vezes. normalmente quem escreve é quem lê. normalmente tem as piores críticas, porque, realmente, deve ser assim. não se faz poesia com calma, com parcimônia. apenas a espera. como um trem. só que o poeta está nos trilhos. e quando ela vem destroça o ser humano. porque deve realmente destroçar. nenhuma linha nasce na plataforma, todas elas estão no vão. e não há poeta que consiga se abaixar para pegá-las e depois soltá-las. elas vem com rapidez, marcam com rapidez e se vão com rapidez. nem oi nem tchau. a poesia serve para isso. para nada.


domingo, 29 de janeiro de 2012

fins de século

de férias me pego pensando em assuntos que não me são comum durante o dia-a-dia. ou até são. mas não os exercito com mais afinco. entalado no vai e vem do trabalho e no solta e puxa do fim de semana, paro poucas vezes para refletir sobre questões mais entranhas, se assim posso dizer. questões que nos levam a ficar acordados até altas horas da madrugada e que nos fazem – a contragosto – refletir o que somos. com as férias pude ler mais e gastar boa parte de meu dinheiro em livros, tarefa saudável que sempre gostaria de fazer. porém pouco realizável durante os meses sem o sol a pino na cabeça.

comprando livros e lendo-os me ponho na posição de leitor e tento esmiuçar cada linha e cada significado daquilo que leio. o que mais tem me chamado a atenção nos últimos tempos foi ler henry miller. no caso li pesadelo refrigerado e primavera negra. tinha lido pouca coisa de miller ate então e resolvi me aventurar no caótico mundo – que haviam me dito – da escrita de miller. bem, até então me pareceu bem caótico. mas na qualidade de leitor que busca algo além da linha me deparei com semelhanças que me deixaram pensando.

encontrei em miller uma angústia que me pareceu bem vívida. muito pouco inventada. real, se pode assim dizer. uma angústia de quem realmente se angustia e não tenta dar falsas impressões para vender livro para yuppies ou compradores de best-sellers. há algo cru nesses livros, que faz das linhas um jogo dialético de progressos e regressos. há alguém que escreve procurando saber o que é, o que se tornou e o que mudou no mundo tanto a ponto de angustiá-lo.

olhando melhor pra miller e sua biografia há alguém que nasceu no final do século xix e que viveu boa parte da vida no século xx. há alguém que por força da idéia de “novo começo de século“ não consegue pertencer ao novo por ter nascido no antigo. e isso foi o que me levou a gostar da leitura. por passar por semelhantes “problemas”. há algo que as pessoas que nascem no fim de um século tem de angustiante e estranho que poucas pessoas entendem. não quero aqui defender um caso de conflito de gerações, mas quero gerar constatações que possam me ser úteis.

ao crescer e ser criado em outro século, acaba-se por incorporar os valores desse século, que para o novo são, de prontidão, antigos. nascer e crescer nos últimos 20 anos de um século é angustiante. é angustiante por termos enraizado em nossas cabeças essa forma linear de séculos. essa história em blocos de 100 anos. que se renova a cada 1200 meses. quem nasce no fim de um século tem o privilegio de saber o que ocorreu nos 80 anos anteriores e o desprazer de saber que em nada contribuiu para eles. a história está posta, pronta e catalogada, sem surpresas. então se espera o fim do século para tentar ser algo, alguém, um tipo qualquer que se faça valer. que tenha suas ações reconhecidas, que possa contribuir para o novo. mas o conflito em ser de um século passado e ter idade suficiente para ver boa parte do século novo não é fácil. pelo menos é o que sinto lendo miller e o que sinto vivendo no nosso bravo tempo.

se há algo que não consigo me afastar é da minha criação e o tempo que vivi enquanto criança e adolescente. algo que há 10 anos significava muito dizer. mas hoje faz pouco sentido, uma vez que nossos pais estão se indo e os filhos que nascem não saberão do que estamos falando. um eco chato do passado e uma voz estranha ao futuro. uma angústia permanente de não pertencer a lugar nenhum. de estar sempre entre o passado e o futuro, mas nunca no presente. sentir que você já é uma geração formada. e mais que geração formada, é uma geração de transição, na qual será creditado nenhum valor. não mais que um valor de transição. ser uma ponte - não verso ou sequer refrão - entre o antigo e o novo e se tornar imóvel, porque suas raízes estão em outro século e o pensamento linear força suas ações em direção ao novo século, mas seus pensamentos, tradições, costumes são de outro. parece proto-saudosismo. pode até ser, mas acho que não é. não é um murmúrio senil de quem não tem mais nada a perder e espera a morte de braços cruzados. mas é um sentimento de imobilidade por estar entre duas realidades, saber o caminho e não poder usar.

não que tudo que possa ser feito por mim ou meus iguais seja jogados no lixo ou sequer possa ser realizado, por sermos de um tempo perdido no espaço. ou de um espaço perdido no tempo. mas há uma carga maior de significados no que decorre de nossas ações. e que é muito pouco notada por aqueles que não compartilham de nossas “agruras”. não que a angústia só se revele verdadeira a cada fim de século e começo de novo. mas ela é muito maior nesse período de tempo. entre pertencer ao antigo e viver no novo há cargas maiores do que nascer na idade “certa”. lógico, há autores e outros mais que possuem angústias e que nasceram e viveram em um só século. mas são angústias diferentes. os filhos de fim de século parecem carregá-las com mais intensidade.


pode ser que eu esteja errado, mas tentamos não ser casos perdidos.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

quebrando paredes

não sei quanto posso dizer de interessante ou suficiente em relação a certas questões, mas sempre tento fazer algo que chamo de exercício excêntrico. esse exercício excêntrico consiste em olhar para algo ou situação e tentar analisar criticamente aquilo. até aí nada demais, nada de complicado ou impossível. muitas vezes quando faço esse exercício me deparo com problemas que vem da própria critica, no caso quando a crítica também afeta as minhas próprias ações. criticar é fácil, mas fazer autocrítica, bem, é mais complicado. no caso volta e meia me deparo com becos sem fim como esse.

o exemplo que tento desenhar aqui é o do ufc - ou mma para os mais puristas. primeiro tento me lembrar do primeiro contato com o evento – não chamarei de esporte em hipótese alguma, mais à frente explicarei os pormenores – e me vem à cabeça meus tempos de criança. criança mesmo. bote aí 1997 ou 1998, e você têm uma criança que praticava por escolha dos pais um esporte, no caso o jiu-jítsu. ótimo para por na linha infantes desviados e ótimo também para expor os mais sedentários – como no meu caso – a hábitos mais aeróbicos. à época me lembro que fazer jiu-jítsu ou qualquer outra luta marcial era febre entre os colegas de colégio e os demais nobres jovens de classe média. o boxe estava um tanto quanto ultrapassado e por mais que nossos avôs e pais tivessem escutado pelo rádio as antigas lutas de alis, fraziers e jofres ainda consideravam o “esporte” violento. bater num homem até ele perder a consciência é algo estranho desde sempre. ainda mais quando se convencionam regras e se estabelece a violência como esporte. e é essa mentalidade que quero explorar.

a luta marcial, como algo digno de exercício aeróbico também sempre foi digna de lições valiosas – segundo nossos mestres e pais – que não só trabalhariam o corpo do praticante como a mente e o espírito – sim, piegas, mas verdade. há séculos de escritos atrás de nós que ilustra o quadro muito bem. a defesa pessoal como ponte para a proteção de semi-capazes e fonte de disciplina para os belicosos. a própria mentalidade das lutas marciais – me refiro às lutas mais em voga desde sempre - vem de outra linha de pensamento – no caso o oriental – e no caso sendo algo exótico e estranho ao nosso linear pensamento. pois bem, essa fonte de inspiração, disciplina e controle sobre corpo e mente sempre seduziu quem pouco entende o cru – e cruel - mundo que vivemos. o problema está quando a gente tenta estender essa carga de benfeitorias para lados que não parecem muito complacentes com a filosofia inicial.

pois bem, diariamente indo à academia - numa infância não tão longe - em companhia de meus pais – árduos operários do leva e traz pra casa cotidiano – sempre passava perto da locadora de vídeo – um achado nos dias de hoje e em exibição nos museus das próximas décadas – e havia sempre um vídeo passando na tv. tratando-se de uma locadora de vídeo em uma academia, não se esperaria ter mais filmes sobre dramas e comédias do que esportes e aventuras. o homem muda a paisagem e a paisagem muda o homem. entre os vídeos que eram exibidos havia aquelas fitas que continham ufc’s - ainda longe da casa das dezenas -, assombrosos espetáculos de “carnificina humana”, uma extrema-unção nos valores de nossos pais, que mal digeriam o até então nada inofensivo boxe. e nas andanças pela locadora, os pais - sempre em sãs consciências - advertiam filhos para não assistirem o show de selvageria – ainda incipiente – no recinto. advertência que valeu para mim também.

até aí, foi o caminho natural de todo praticante infantil de luta marcial. não veja o ufc, mas obedeça às instruções dos golpes de seu mestre. só que de um tempo para cá as coisas tão mudando. e aqui o proto-senil digitador tenta ver como chegaram ao ponto que chegaram. não que tente aqui alertar às varonis famílias brasileiras quanto à moléstia incurável causada nas futuras gerações pela violência gratuita televisionada. não. esse discurso é deixado para outros perfilarem. mas, tento fazer um exercício excêntrico. lembra dele?

tento buscar aqui o “turning point”. em que ponto se tornou saudável e extremamente prazeroso convidar amigos ou combinar encontros para assistir aos nossos “gladiadores do terceiro milênio”? é valido chamar de espetáculo o que outrora eram demonstrações vulgares de poder? é benéfico tentar fazer de uma idéia romana de entretenimento algo que possa ser chamado de esporte? são essas questões que ponho volta e meia na cabeça. e explico que a critica também se relaciona com a autocrítica, já que tenho amigos e vejo as lutas volta e meia.

a idéia de novos espartacus do século xxi é recente. no caso nacional, é quase fetal – o que também nos leva a perguntas quanto ao seu aborto ou não. o mundo em que vivemos, assim como quaisquer mundos ainda não conhecidos, é resultado de séculos e milênios de luta pela sobrevivência, na qual e as raízes e cicatrizes marcaram profundamente e são carregadas em nosso material biológico. quando temos séculos de historia que nos mostram que desde que o mundo é mundo, ele é um lugar feroz, com poucas luzes e nem um pouco convidativo para os inaptos, há gente que tenta explorar isso. como um nicho de mercado. batalhas, guerras, conflitos sempre foram travados perto dos batalhões, mas nunca na frente do homem comum. no caso mais especifico, guerras sempre existiram, mas elas nunca foram noticiadas para os não-soldados na velocidade como ocorre nos dias de hoje. quando ela chegava para aqueles que não estavam nos frontes, bem, ela terminava também com quem não estava nos frontes. e a memória da guerra prosseguia através de relatos de quem sofria com a guerra. no caso de nosso mundo globalizado, as noticias da guerra chegam a todo o momento, não importando onde ela ocorre. ou em que horário ela ocorre. e grande parte das vezes são relatos por parte de quem não sofre com a guerra. então, desconfio eu, que o sentimento de estar perto da batalha, porém no conforto do lar é bastante aprazível e fascinante para quem pode usufruir de tal informação. sem a dor de uma blitzkrieg. e é aí que o combate mano a mano – com “regras” – se torna febre, apesar de nossas ponderações quanto ao delírio.

não tento aqui invocar o teatro desde tempos passados para a explanação acerca do assunto, digamos, sangrento, mas há um certo quê de tragicomédia humana na exibição de socos e chutes. e o fascínio que decorre de tais. o entretenimento e o espetáculo sempre serviram como motores de paixões humanas, sejam elas boas ou ruins. uma peça, uma música, um filme ou qualquer forma de manifestação artística sempre teve seu valor quando toca o homem, comum ou não, no âmago de seu ser – eu sei, piegas também. e outro nicho de mercado e forma de exploração é criado. não que todo teatro, cinema ou álbum sejam os mais sublimes de todos feitos do homem. mas há um fator essencial para a sua execução, no caso a afloração de paixões ou ódios. como motor de sentimentos, a arte também é motor de ressentimentos. como tudo no mundo, há o doce e há o amargo. o espetáculo, desde tempos remotos, é fonte de inspiração e discussão entre iguais. não há como negar isso. mas há espetáculos que surgem para reflexão, exaltação e introspecção. mas há outros que não. peço aqui ainda que a prosa não seja levada a níveis fundamentalistas, não é de forma alguma um protesto conservador, mas sim um exercício crítico. não me remeto a tempos melhores ou a ares mais frescos, mas não consigo deixar de tentar avaliar o panorama. no caso do mma não há nada disso. apenas pão e circo. ou melhor, dizendo, mcdonalds e sangue. há, lógico, espetáculos que servem apenas como diversão “boa e limpa” e não afeta em nada quem assiste. mas quanto ao mma, não se sabe é algo passageiro que não irá afetar quem o assiste.

ao tentar transpor o “espetáculo” para a arena do “esporte”, o mma - e me dirijo aos fãs e realizadores – pode chegar a terreno pantanoso. a idéia de ter dois homens se engalfinhando até a desistência – consciente ou não – de um dos dois se tornar esporte é perigosa. assim como já vimos homens endinheirados morrerem pilotando a 300 km/h envoltos em duas banheiras de combustível solido há o sério risco de o novo “esporte” ir pelo mesmo – mau - caminho. não só dentro do ringue ou da pista, mas principalmente fora deles. nossa paixão por velocidade e violência faz vitimas há tempos. mas o problema é quando há vitimas que são inocentes. reverberarão de muito longe, gritos primais de que nunca houve morte no ufc. bem, ainda não. e no ufc. fora dele, cansamos de ver - à tarde mesmo, entre o filme calmo e a novela - tragédias – ocorridas das mais diversas formas - meticulosamente exploradas para delírio do publico. e a carga de se tornar esporte - algo que deva ser praticado por ser benéfico - pode fazer alguns parafusos se afrouxarem em cabeças mal-balanceadas. sim, também será dito que o próprio realizador-maestro do jogo todo é contra o rótulo de esporte e que prefere espetáculo. ok. mas ele é um dos poucos. não por ética ou qualquer coisa que valha, mas por algo que o isente de problemas, principalmente no primeiro minuto que algo feder, ele irá levantar a voz e dizer: “eu avisei”. mas aí não sei se será tarde.

não tento aqui fazer uma demolição do caso e forçar o enjaulamento dos culpados, mas acho essencial o exercício de desconstrução e reconstrução para uma melhor crítica. prefiro a desconstrução não por me tornar imparcial do assunto, até porque já me declarei espectador sazonal do evento, mas para tentar por na crítica um pouco de autocrítica. não é só com o dedo em riste que a crítica deve ser feita, mas também com o rosto pro espelho.

infelizmente, há algo que não se pode negar na coisa toda. que há uma institucionalização da violência na nossa sociedade. não vou datar – e nem sei como fazer isso - como começou, mas que ela existe, existe. o sujo, vulgar, o violento, o sádico tem lugar em nossas límpidas salas de visita. apenas ainda não temos a coragem suficiente para assumir isso. e eventos como o ufc - e afins - nos ajudam a transvestir nossos ódios mais bestiais como coisas levianas e banais. o problema é quando a montagem acaba e o palco some. e alguém vai querer tomar o lugar dos atores.


pode ser que eu esteja errado, mas não gostaria da quebra dessa quarta parede.

domingo, 15 de janeiro de 2012

linhas

confesso que manter isso aqui muitas vezes me parece custoso. não sei por qual razão. mas me pego pensando no que é escrever. e o que se precisa para escrever. uns escrevem mais em profusão que outros. outros adotam frases curtas. outros preferem escrever extensamente sobre quaisquer assuntos que tornem o texto cada vez maior para próprio deleite ou para encher páginas. mas não sei até onde me encaixo enquanto escrevo. acho que em todos.

leio cada vez mais, diversos autores, e não sei se todos eles um dia poderão me satisfazer. por um ponto final e deixar um bilhete de despedida: “acumulei todo o conhecimento do mundo. adeus.” imagino que não. mas às vezes imagino que sim. uma solução final para as agruras? talvez. ou quando as agruras cada vez mais se avolumam e não há mais saída. não há mais livros para ler.

escrever e ler são ótimas tarefas cotidianas – pelo menos isso – pois se entende o processo de escrita ao ler, e escrevendo se entende a leitura. quem lê e escreve, conhece o sacrifício do outro para transpor em palavras, pensamentos muitas vezes tão rápidos que são esquecidos com o dobro de rapidez. divagações à tarde, iluminações à noite ou epifanias matinais. tudo isso quando escrito se torna essencial para quem o escreve. porém, a dúvida do escritor é essa: será que é essencial também para quem lê?

escrever é uma tarefa por vezes árdua e simplória. quem escreve logicamente tem vaidades. vaidades de expor o que pensa e intenções – por vezes escusas, mas o que há de se fazer? – de conseguir algum compartilhamento com quem lê. algum segredo escondido, que só duas pessoas – que por mais que estejam longe uma da outra – poderão entender. ler é compartilhar a vida do outro, de outros. escrever é tentar mostrar a sua vida - com angústia e alegrias.

ler é essencial para a escrita. e escrever é essencial para a leitura. e aqui não digita um devorador de livros contumaz ou um ávido escritor vivaz, mas que volta e meia prefere esquecer a humanidade e mergulhar em livros, linhas, poemas e tudo mais que envolver o ofício das letras. por mais que a tentativa de esquecer a humanidade seja em vão, uma vez que todas as linhas escritas sejam parte essencial da humanidade. um epitáfio, por assim dizer.

quem escreve, e, portanto lê se depara diversas vezes com opiniões de quem também pratica a dupla jornada. orwell é um dos mais claros quanto a isso, mas fico com hemingway. “a felicidade em pessoas inteligentes, é das coisas mais raras que conheço”. sim. é exatamente isso. quem escreve, se esforça, tenta agregar conhecimento, força sua inteligência ao limite e estoura a sua razão ao máximo, tentando exprimir em linhas os dias, meses e séculos de busca pelo o que é humano. mas escrever é se angustiar. toda linha é um grito inesperado, um sussurro em desespero, uma vontade incessante de ser ouvido. um s.o.s em parágrafos.

pode ser que eu esteja errado, mas escrevi.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

um céu estrelado

depois de dias de chuva, estranhos e abençoados, numa estação que dava - e continuará a dar - todos os sinais que irá nos castigar, as coisas voltam ao seu normal. todos os reclames quanto ao calor, ao incômodo, ao suor, ao desconfortável pensar que estamos à deriva de um sistema que insiste em nos fazer refletir que não teremos sossego. tudo isso se dissipa quando à noite se vê o céu estrelado, lembrando-nos que nada que possamos dizer ou fazer contra o calor ou algo do tipo vai ser maior do que o negócio todo.

um céu estrelado no meio de um deserto de rocha e cimento, no meio de uma cidade com milhões de habitantes e que respira ar impuro todos os dias. ar castigado, ar cheio de pecado, de culpa e nonsense por toda parte que se olha e se anda. um céu estrelado que nada mais é que fotos antigas de antigos sistemas, iguais ao nosso, também igual aos outros todos bilhões de sistemas. um céu estrelado que nos mostra incapazes de sermos o que pensamos ser, algo maior, algo que não seja finito. um céu estrelado que está para as nossas significâncias assim como um fio da navalha estará para qualquer pedaço de carne. um céu estrelado que lava todas nossas culpas, erros, signos e tentativas de sermos algo que não queiramos.

um céu estrelado que nada mais é do que algo muito maior que nós, que nossas inteligências, que nossas agruras, que nossas teimosias. nada pode ser mais que um céu estrelado. Um céu estrelado, que é uma constelação de deuses desconhecidos, não teima em ser maior do que é, não se esquece do que é, não tenta se mudar. ainda que possamos mais outras vezes ver esse céu estrelado, ele não pode nos ver. ele não irá nos contemplar, como nós a ele. somos um universo de possibilidades que se extinguem ao primeiro tentar. um céu estrelado tem suas tentativas sempre repetidas, à exaustão. um céu estrelado é a medida de tudo que não é humano.

um céu estrelado se aceita como é.