sábado, 24 de dezembro de 2011

o bobo está morto. viva o bobo.

christopher hitchens está morto. enterrado. nunca mais ousará falar, escrever ou beber de novo. assim esperam os seus detratores e assim lamentam os seus orfãos. tudo que pôde ser dito a respeito do homem foi dito. nos resta pouco a dizer. mas também nos resta pouco para entender.

nos resta muito pouco para entender a importância de pessoas como hitchens. pessoas que não se deixaram amolecer pelo tempo, versões, fatos ou por pressões de forma alguma. ainda que todos esses empecilhos sempre tenham existido e sempre existirão. pessoas não "de fibra moral", mas pessoas de verdade, que existem mesmo e que não compactuam com o status quo. e ainda mais quando esse status é tão débil e possuidor de reações infantis como o que se tem hoje. e que tristemente será legado às futuras gerações.

uma pessoa que ao escrever lembrava um fictício debate - às vezes nem tão fictício assim - entre o bobo e o rei. a comparação pode parecer exagerada ou errônea, mas muitas vezes ao ler hitchens me deparei com isso. e aqui também espero que quem lê essas linhas possa ter a mesma noção. "disparates" que eram dirigidos à magnânimas pessoas e/ou instituições e que poucas vezes pareciam fazer efeito. mas que no fim, para fascínio da leitura, faziam. e é aí que a gente gosta. quando o bicho pega. mais especificamente quando o bicho pequeno pega o grande.

nesse jogo de bobo contra o rei a comparação pode parecer esdrúxula, há certas coisas que não podem ser negadas. como autor, hitchens zombava com um peculiar humor inglês - perdido, ou não-usado, há algum tempo - de tudo e todos que ao seu ver, e à luz de uma consciência crítica, estavam não só errados, mas profundamente equivocados da raiz até a folha. assim como orwell, uma de suas maiores inspirações - e aqui também puxo o pirão, porque monsieur eric blair era e é certamente mortal na expurgação de bactérias humanas afins - hitchens era um cavaleiro sem exército. escrevendo sem ter filiação política ou amor à pátrias. numerava uma a uma as idiossincrasias cotidianas de reis e rainhas e as demolia como um castelo de areia. deixando muito pouco a ser dito, as varria do ambiente e das idéias daqueles que às liam e/ou assistiam. suas opiniões poderiam até ser discordáveis, porém a argumentação sólida e a ironia pastosa faziam da crítica um deleite, quando não até para o próprio alvo.

ainda que as maiorias silenciosas não liguem a mínima - ou até regojizem - para a morte de mais um "inimigo da fé" - um dos diversos tratamentos ao falecido - elas ainda escutarão suas reverberações. enquanto houver ignorância motivada pela crença, algum leitor de hitchens - e aqui me incluo - brandará em um tom moderado, como o mestre: "idiotas". o conhecimento, sabia bem hitchens, não serve para nos deixar mais confortáveis, mas para aumentar a consciência que estamos vivos. e justamente no calo que aperta, poucas almas vivas queriam colocar sapato.

o percurso até a destinação final foi extensamente documentado pelo próprio, abrindo - e até chocando - os olhos do mundo que lhe era (a)crítico e reforçando as idéias dos concidadãos do pensamento hitcheniano. não se foi de modo triste por ter sido mais ou menos documentado, mas se foi de forma real. como, talvez, sempre quisera - e também talvez, como sempre quisemos.

christopher foi como se precisássemos sempre ser lembrados: todo mundo morre. e a maioria das vezes não é bonito. por mais que o epitáfio tenha sido marcado em cada artigo, a despedida em cada leitura e a sombra do ceifador em cada linha, não houve nenhum traço de pieguice. travado pelos motores e rotores de uma cama de hospital a vontade - e volúpia - com a qual sempre escreveu continuou. para delírio do público presente e tristeza do público pagante.

hitchens é, foi e será uma grande voz no fim de cada túnel. aquela voz não que guia, mas que rouca e ébria dá sinais tremendamente válidos àqueles que se recusam a enterrar as cabeças e agradecer às botinadas. assim como orwell e outros mais se foi, assim como todos nós iremos. do primeiro ao último instante deixou desconfortavelmente isso claro. mas também deixou um mundo, esse sim, mais confortável para aqueles que não se acomodam e um pouco mais desagradável para o resto entumecido.

pode ser que eu esteja errado, mas hitchens está certo.